sábado, 1 de setembro de 2018

Os Gaúchos na Umbanda

Axé pra ti, tchê!

Censo coloca Rio Grande do Sul no topo do ranking nacional das religiões afro-brasileiras


Costela de porco para Odé, costela de boi para Ogum.
Gaúcho serve churrasco até para santo. E haja sal grosso.
 Do rio Guaíba aos pampas, descendentes de alemães e italianos
balançam ao toque dos tambores e fazem do Estado
 o maior terreiro de axé do País.
 É este o cenário apresentado pelo Censo Demográfico 2000,
 divulgado recentemente pelo IBGE.
 Pode parecer estranho, mas 1,63% dos gaúchos professam
 alguma religião afro-brasileira, enquanto a média nacional é de 0,34%.
 Pela primeira vez, o Rio de Janeiro ficou em segundo lugar, com 1,32%.
Na Bahia, terra de Mãe Menininha do Gantois, o índice cai para 0,09%:
uma desconfortável 13ª posição.
Os números surpreendem quando comparados aos índices
de raça e cor da população.
 Enquanto 75% dos baianos e 45% dos fluminenses
 se declararam pardos ou negros, apenas 13% dos gaúchos
são descendentes de africanos.
O campeão nacional do axé é também
 o segundo Estado mais branco do Brasil,
atrás apenas de Santa Catarina.
O fenômeno reflete o que o professor de antropologia da USP
Vagner Gonçalves da Silva chama de transformação
 do candomblé em religião de conversão.
 “As religiões étnicas foram praticamente extintas.
O catolicismo não é uma religião de hebreus e mesmo
o judaísmo já permite conversão. Do mesmo modo,
 o candomblé deve ser encarado como religião universal”,
explica. “Alemães podem cultuar seus orixás e não precisam
abdicar de sua religião de berço. Na Bahia,
 a maioria dos pais-de-santo vai à igreja.
O Dia de Iemanjá é o Dia de Nossa Senhora dos
 Navegantes e até as fitinhas do Bonfim têm as cores dos santos”,
diz o antropólogo.
No Rio Grande do Sul, as religiões afro-brasileiras assumem formas um pouco
 diferentes das práticas hegemônicas no Rio e na Bahia. 
Os gaúchos se dividem entre os terreiros de umbanda – 
religião nascida no Brasil com influências negras, indígenas e européias – 
e os templos de batuque, uma vertente do candomblé com pequenas variações.
 Tanto uma quanto a outra raramente são citadas pelos adeptos na hora de responder
 ao censo. Por isso, os resultados causam surpresa. Para Pedro de Oxum Docô,
um dos mais festejados pais-de-santo de Porto Alegre, o primeiro lugar no ranking
 deve-se à convicção dos conterrâneos.
 “Muitos batuqueiros se declaram católicos para o recenseador. 
Talvez isso aconteça com menos frequência no Rio Grande do Sul”, supõe.
 “Esta auto-afirmação do gaúcho explica-se em parte aos incentivos do governo”,
 conta Pedro, vestindo abadá e bombacha. 
Ele se refere a eventos públicos introduzidos nas últimas administrações, 
como a Festa de Oxum, realizada desde 1994 no dia 8 de dezembro,
e a Semana da Umbanda, 
ue leva centenas de médiuns à praça pública em frente à prefeitura.
Conforme estimativa levantada pela Federação da Religião 
Afro-brasileira (Afrobras),com sede em Porto Alegre,
há cerca de 50 mil templos dedicados
à umbanda ou ao batuque em todo o Estado. O número
deles cresce a cada ano, assim como o de lojas especializadas em
artigos religiosos. O fenômeno navega contra a corrente.
De 1991 a 2000, de acordo com o censo, a proporção de adeptos
de religiões
afro-brasileiras no País caiu de 0,45% para 0,35% da população.
 Enquanto a maioria das tradições culturais morre à medida que
seus praticantes envelhecem, o batuque gaúcho não encontra resistência
nem mesmo entre os jovens. “Na minha sala de aula, quase todo
mundo é batuqueiro”, conta a estudante do ensino médio Fayra Vieira,
17 anos. Acostumada a virar a noite com vestido branco
e colar de contas azuis, a filha de Iemanjá aprendeu a cantar em dialeto
africano. “Hoje, eles são gravados em CD para que os fiéis possam
 praticar em casa”, conta Pedro de Oxum.
Como a maioria dos babalorixás gaúchos,
 Pedro confirma a tese da conversão religiosa.
 Ele estudou em colégio católico,
foi coroinha e ia à missa cinco vezes por semana. Hoje, aos
41 anos, Pedro comanda um dos maiores templos de batuque da
capital, além de um site e um programa na TV Guaíba.
Simplicidade – Mas não é preciso internet nem televisão
para atrair adeptos. “O africanismo cresce no Rio Grande do Sul
 porque é mais simples. Nossas divindades vêm até nós,
não ficam escondidas em um plano superior”,
resume Genezi de Araújo, conhecida como Mãe Iara e dona
 de um centro de umbanda. Foi esta sua experiência pessoal:
“Quando era menina, tinha uns ataques que todo mundo pensava
ser epilepsia. Fui a vários médicos, até que uma vizinha sugeriu
que eu visitasse um terreiro.
 Era apenas meu caboclo tentando se manifestar”, 
conta. “Sempre que recebia um passe durante a seção,
 voltava para casa tranquila”,
diz. A mesma tranquilidade exala dos olhinhos da
pequena Júlia Eggers Rehbein, de apenas três meses,
 que toda semana visita o centro de Mãe Iara. Às vezes,
 dorme nos braços de um médium, alheia ao cheiro de charuto e incenso.
 “Minha família não gosta, mas trago a Júlia toda terça-feira,
 desde a primeira semana de vida”, conta a mãe,
Carla Eggers, 30 anos, uma loira de olhos claros.
 A família,como muitas no Estado, é alemã,
luterana até a raiz dos cabelos. Santo de casa não faz mesmo milagre.

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